sábado, 20 de outubro de 2018

Fi(nh)ava

A fibra, a carne, a intenção morriam à míngua, como lua minguante às três da manhã. Não havia gesto ou palavra que desafogasse a letra pensada. Deixava tudo para trás, now à deriva, era só sobra de saudade, sombra de rede entre-meada, de não ditos em entrelinhas. Tornou-se uma mistura de pro-secco, omeprazol e aspirina. Por vezes, enquanto tomava vinho, solvia algum dilema. Deixou-se definhar, findou por ali. Enquanto ao longe pontos de luz e lastros de algazarra juvenil anunciavam que era noite de sábado,  sozinha, despida até do minuto a mais que o Criador concedeu, tentava acalmar as dores que sentia. Encostada no batente da porta, via a lua surgir. Apagou as luzes,  acendeu outro cigarro. Definhava, mas, quem sabe, não era em vão se a saudade pudesse virar poema.

Maria Lemke

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Elegia(s)

Por quais motivos você deixou de escrever suas doces poesias? Sequer escreve aquelas deliciosas safadezas... 
Reclamou o amigo, sagaz.
E desde quando é doce minha poesia? Redarguiu ela, desconcertada.
Desde quando você amava. Disse, olhando-a nos olhos.
Sim. Pensou em silêncio. Então, na intimidade de seu ser, lembrou-se que amou pela primeira vez como se fosse a última. 
Quem disse que amei? respondeu mentindo muito mal.
E categórica disse que deixaria de lado a trova, a provocação, o verso, a poesia. 
Elegia as elegias. Disse quase sem voz. 
 Então, sem poder disfarçar, com saudades da alegria, sentiu, pela primeira vez, vontade de chorar. 

Maria Lemke

Pray(er)


Ausente tornou-se de tudo: Toques, vãos e fendas, frestas de alegria de si. Nada havia. Ninguém a via para além dos suspiros, da tristeza no olhar perdido. Ninguém havia visto tanta tristeza, ninguém havia visto nada tão profundo. Seus olhos eram tristes, sem brilho, baços, fundos. 
Na reza, baixou os olhos e baixinho pediu aos céus para a vida voltar a ter algum encanto.
Ao vento pedia clemência para levar embora a tristeza, a solidão, as lágrimas que teimavam em brotar, do desespero, da ausência, na forma de triste canto.

Maria Lemke

sábado, 13 de outubro de 2018

Canto

Menininha, disse seu Divino. Olha lá, tá vendo? Até o casal de canários veio pra ficar com você na sua casa nova. Vieram pra dizer que enquanto estiverem perto não haverá pranto. Eles sempre fazem morada onde sabem que existe amor. Você vai ver, rapidinho vão fazer uma família pra alegrar seus dias, seu canto.

Maria Lemke

domingo, 7 de outubro de 2018

Por-tais

Começou tirando a  tinta envelhecida dos portais das portas e janelas. Lembrou de "esquecer para lembrar". Ao contrário do conto, nos portais que raspava, que se esforçava pra limpar, não havia muitas camadas de tinta. Um marrom escuro, enegrecido pelo tempo e que um verniz deixara tudo ainda mais difícil de tirar, era tudo o que havia. Ela só queria chegar à cor original da madeira que sabia ser ipê. Eram peças antigas, compradas em demolição...Lembrou dele dizendo: "historiador de 'colônia' gosta de estilo colonial"; ele estava certo, pensou com certo aperto no coração. Enquanto lixava, pensava na vida, nas pessoas que vem e vão, nos vãos e vincos da madeira que tinha entre as mãos.  Algumas pessoas são mais marcadas pelo tempo, são mais endurecidas e se cobrem de verniz para se protegerem. É preciso cuidado para tirar essas camadas, não ferir, apenas sentir o que há por baixo de tanta proteção. É preciso cuidado para não ferir, pensou.  Decidiu manter algumas marcas de tinta naqueles portais. Os portais, portas e janelas serviram de proteção para alguém, abrigo do vento, do sol, da chuva e de mais de um temporal.  Pensou na vida: apesar de insistirmos em querer apagar o passado, melhor deixar suas marcas. Afinal, como as árvores, somos feitos de vincos, anéis, ranhuras...vernizes mais tarde. Às vezes mais, outras menos expostos às intempéries da vida, do tempo. Raspando a velha tinta e o verniz daqueles portais concluiu que a beleza estava lá com toda sua história, à espera de ser tocada com tudo que (ha)via. Decidiu por respeitar esses marcadores de tempo, deixou traços dessa tinta incrustada nas veias, como um corpo que já tivera entre as mãos.
Os portais também têm histórias e vincos, pensou.

Maria Lemke