Começou tirando a tinta envelhecida dos portais das portas e janelas. Lembrou de "esquecer para lembrar". Ao contrário do conto, nos portais que raspava, que se esforçava pra limpar, não havia muitas camadas de tinta. Um marrom escuro, enegrecido pelo tempo e que um verniz deixara tudo ainda mais difícil de tirar, era tudo o que havia. Ela só queria chegar à cor original da madeira que sabia ser ipê. Eram peças antigas, compradas em demolição...Lembrou dele dizendo: "historiador de 'colônia' gosta de estilo colonial"; ele estava certo, pensou com certo aperto no coração. Enquanto lixava, pensava na vida, nas pessoas que vem e vão, nos vãos e vincos da madeira que tinha entre as mãos. Algumas pessoas são mais marcadas pelo tempo, são mais endurecidas e se cobrem de verniz para se protegerem. É preciso cuidado para tirar essas camadas, não ferir, apenas sentir o que há por baixo de tanta proteção. É preciso cuidado para não ferir, pensou. Decidiu manter algumas marcas de tinta naqueles portais. Os portais, portas e janelas serviram de proteção para alguém, abrigo do vento, do sol, da chuva e de mais de um temporal. Pensou na vida: apesar de insistirmos em querer apagar o passado, melhor deixar suas marcas. Afinal, como as árvores, somos feitos de vincos, anéis, ranhuras...vernizes mais tarde. Às vezes mais, outras menos expostos às intempéries da vida, do tempo. Raspando a velha tinta e o verniz daqueles portais concluiu que a beleza estava lá com toda sua história, à espera de ser tocada com tudo que (ha)via. Decidiu por respeitar esses marcadores de tempo, deixou traços dessa tinta incrustada nas veias, como um corpo que já tivera entre as mãos.
Os portais também têm histórias e vincos, pensou.
Maria Lemke