quinta-feira, 16 de junho de 2022

RIP

 

Disseram para o mundo que parte do meu coração foi enterrado na curva de um rio. Não. Não foi enterrado. Sou agora uma parte da floresta. Vivi os ais. Sou mais que a curva do rio. Mais longe.  Estou espalhado. Somos espelho de um Brasil mortal. Caímos ao som dos rifles na calada da noite. Não somos pedaço. Nem somenos. Somos mais de um. Somos sons, memórias na mata. Muitos Chicos, Marias, José e João. Entre nós, Dorothy, Bruno e Dom. Somos mais que um. Somos a voz que ninguém cala. Somos a voz da mata. A voz que vive. A voz que ninguém mata. Uma bruma valente. Somos jornada. Juntos, somos mais que nossos pedaços. A TI, mundo: até a VI(s)TA. Somos semente. Vamos brotar.


                                                                                                                                                                            Maria Lemke



sábado, 5 de fevereiro de 2022

Lacrimosa

 



Meu amor, não se assuste. O que vês são meus demônios rebeldes, acham brechas em minha teia cheia de frestas. 
Alguns ficam. Outros,  se dissolvem em água mal sã. 
Mal vistos, vão.
Então escapam por meus olhos, tornando evidente minha sorte, minha fragilidade, minha escuridão.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Maria  Lemke

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

250xsete

 

Foto: Maria Lemke (2013) Catedral de Sal: Zipaquirá

Não ouvia raio, nem trovão, vento ou ventania. Num raio de lonjura, nada se via: nem sol, nem lua, vida, verbo ou alegria. O mundo levando tudo embora, mais raso, mais baixo, mais fora. Mais de um por hora. Mais de uma alma per dia.  Cova rasa. Desassossego. Morte à mostra num canto.

Memória, posfácio do esquecimento. Ária para os que vivem sete abaixo.

 

M.L

 

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Avassala(,)dor

Primeiro veio só um verso. 
Depois, num tempo lento, um preenchido de vazios e dores.
Tudo era avassalador. Avassala, dor, avassala, logo. 
Aqui jaz a lembrança de meus caminhos tortos. 
Não tenho sequer um terço. 
Aqui, é tudo torrão de terra seca.
Apressa-te! Põe sobre a lápide as minhas flores!
Lembre-se da vela. 
Lembre-se do amém!
Tua reza é um alento para que eu ande com alguma luz no vale dos mortos, nas terras do além.




So(m)bra

Sou apenas o resto de algo sem nome. 
Animal maltrapilho. 
O pó.
O podre.
O desconhecido apegado ao odre velho,
aquele que brinda com vinagre, zinabre, e amarga o gosto
Aquele sem rosto.
O pobre espírito que vagueia no espaço. 
Aquele de quem quase todos esqueceram.
E sequer se lembram de acender mísera cera.
O morador incerto em jazigo sujo, frio, sozinho, insone.
Aquele que pede oração ao passante.
Aquele que passa a noite errante depois da vida em erros.
A so(m)bra morta que sequer o abutre come.


sábado, 16 de março de 2019

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Paralelos

Foto: Maria Lemke

Escrevo quase todos os dias. Inclusive sobre pontes, pontas de icebergs, portas, portais, partes de pontes quebradas, pontos (s)em nós,  restos de rostos. Escrevo sobre sobras de vestidos, vestígios e sombras das minhas entranhas, sobre vísceras e vícios de minha veia literal. Escrevo, traço, rabisco paralelas, para eles e para elas. Sou ela. Um elo. Um aro, um arco, um corpo arqueado. Uma flecha ao vento. Momento que passa. Movi-mento. Escrevo, sobretudo, o que o esquecimento ainda permite. (D)escrevo, (tu)as lembranças vagando no meu silêncio, na escuridão, no meu pisar trôpego ausente de chão.


Maria Lemke

domingo, 4 de novembro de 2018

Trama - para Cuca Machado

Foto: Maria Lemke

Estava definitivamente enredada na trama das vontades. A trama era feita de vontades, enredo. Era essa uma de suas tristes verdades: esperava o toque, o cheiro, o gosto. Carregava dentro de si esse segredo,  Esperava não morrer à míngua, sobreviver à mísera sorte, não finar durante o degredo.

Maria Lemke

sábado, 20 de outubro de 2018

Fi(nh)ava

A fibra, a carne, a intenção morriam à míngua, como lua minguante às três da manhã. Não havia gesto ou palavra que desafogasse a letra pensada. Deixava tudo para trás, now à deriva, era só sobra de saudade, sombra de rede entre-meada, de não ditos em entrelinhas. Tornou-se uma mistura de pro-secco, omeprazol e aspirina. Por vezes, enquanto tomava vinho, solvia algum dilema. Deixou-se definhar, findou por ali. Enquanto ao longe pontos de luz e lastros de algazarra juvenil anunciavam que era noite de sábado,  sozinha, despida até do minuto a mais que o Criador concedeu, tentava acalmar as dores que sentia. Encostada no batente da porta, via a lua surgir. Apagou as luzes,  acendeu outro cigarro. Definhava, mas, quem sabe, não era em vão se a saudade pudesse virar poema.

Maria Lemke

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Elegia(s)

Por quais motivos você deixou de escrever suas doces poesias? Sequer escreve aquelas deliciosas safadezas... 
Reclamou o amigo, sagaz.
E desde quando é doce minha poesia? Redarguiu ela, desconcertada.
Desde quando você amava. Disse, olhando-a nos olhos.
Sim. Pensou em silêncio. Então, na intimidade de seu ser, lembrou-se que amou pela primeira vez como se fosse a última. 
Quem disse que amei? respondeu mentindo muito mal.
E categórica disse que deixaria de lado a trova, a provocação, o verso, a poesia. 
Elegia as elegias. Disse quase sem voz. 
 Então, sem poder disfarçar, com saudades da alegria, sentiu, pela primeira vez, vontade de chorar. 

Maria Lemke

Pray(er)


Ausente tornou-se de tudo: Toques, vãos e fendas, frestas de alegria de si. Nada havia. Ninguém a via para além dos suspiros, da tristeza no olhar perdido. Ninguém havia visto tanta tristeza, ninguém havia visto nada tão profundo. Seus olhos eram tristes, sem brilho, baços, fundos. 
Na reza, baixou os olhos e baixinho pediu aos céus para a vida voltar a ter algum encanto.
Ao vento pedia clemência para levar embora a tristeza, a solidão, as lágrimas que teimavam em brotar, do desespero, da ausência, na forma de triste canto.

Maria Lemke

sábado, 13 de outubro de 2018

Canto

Menininha, disse seu Divino. Olha lá, tá vendo? Até o casal de canários veio pra ficar com você na sua casa nova. Vieram pra dizer que enquanto estiverem perto não haverá pranto. Eles sempre fazem morada onde sabem que existe amor. Você vai ver, rapidinho vão fazer uma família pra alegrar seus dias, seu canto.

Maria Lemke

domingo, 7 de outubro de 2018

Por-tais

Começou tirando a  tinta envelhecida dos portais das portas e janelas. Lembrou de "esquecer para lembrar". Ao contrário do conto, nos portais que raspava, que se esforçava pra limpar, não havia muitas camadas de tinta. Um marrom escuro, enegrecido pelo tempo e que um verniz deixara tudo ainda mais difícil de tirar, era tudo o que havia. Ela só queria chegar à cor original da madeira que sabia ser ipê. Eram peças antigas, compradas em demolição...Lembrou dele dizendo: "historiador de 'colônia' gosta de estilo colonial"; ele estava certo, pensou com certo aperto no coração. Enquanto lixava, pensava na vida, nas pessoas que vem e vão, nos vãos e vincos da madeira que tinha entre as mãos.  Algumas pessoas são mais marcadas pelo tempo, são mais endurecidas e se cobrem de verniz para se protegerem. É preciso cuidado para tirar essas camadas, não ferir, apenas sentir o que há por baixo de tanta proteção. É preciso cuidado para não ferir, pensou.  Decidiu manter algumas marcas de tinta naqueles portais. Os portais, portas e janelas serviram de proteção para alguém, abrigo do vento, do sol, da chuva e de mais de um temporal.  Pensou na vida: apesar de insistirmos em querer apagar o passado, melhor deixar suas marcas. Afinal, como as árvores, somos feitos de vincos, anéis, ranhuras...vernizes mais tarde. Às vezes mais, outras menos expostos às intempéries da vida, do tempo. Raspando a velha tinta e o verniz daqueles portais concluiu que a beleza estava lá com toda sua história, à espera de ser tocada com tudo que (ha)via. Decidiu por respeitar esses marcadores de tempo, deixou traços dessa tinta incrustada nas veias, como um corpo que já tivera entre as mãos.
Os portais também têm histórias e vincos, pensou.

Maria Lemke

sábado, 29 de setembro de 2018

(P)rumo(s) - ou (c)lave

Tu(do) ia virar poema. Nada escapava. Lá fora, o sol inclemente, lá dentro, os pés descalços, as caixas vazias.  As so(m)bras, os excessos grudados no chão e nas paredes nuas. A tempestade se aproximando na linha do horizonte. Po(e)nte cedendo. A febre fincada à meia-noite, queimando à meia-luz. A  aleg(o)ria mal disfarçada. A falta de rimas, de solfejos, a clave de sol (s)em luz, a chave de abrir sangria sem dó. Canto, toada da terceira nota, na hora nona, tocando (para) mi(m). Ausência de (p)rumos. O arre-medo do avesso a-trave(r)ssando a escuridão. O clamor pela intimidade do além, a alma flertando com a morte nos jardins do tempo. Até os anjos de asa quebrada se protegendo das agruras do silêncio, buscando conforto na solidão de algum templo.

Maria Lemke

Re-juntando

Nenhum poeta escreve sem saudades, sem lembranças, sem saudade funda, sem dor doída. 
Nenhum poeta sobrevive sem urgência, sem se bendizer, sem se maldizer da sorte. 
Nenhum poeta sobrevive sem o não e o sim. 
A poesia sobrevive enganando a tristeza, brincando com a sorte.
Nenhum poeta sobrevive sem intensidade, sem enganar a morte.
Só o poeta sai mudo, fingindo riso, qual arlequim.
                               Sobrevive (s)em fa(r)dos (?) 
                     Nenhum poeta sobrevive sem amor. 
Nenhum amor vive em enganos. 
Todos os poetas cantam tristes, fazem ode às perdas, aos danos.  

Maria Lemke

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Voraz

O  aroma suave de rosas misturado ao desejo inebriava seus sentidos. Cada  pedacinho de pele, cada pelo se arrepiava manifestando desejo, volúpia. Devorado pela vontade voraz, alcançou seu segredo, o vale entre seus seios: era sua fêmea no cio, com gosto molhado entre as pernas. Incontido, tomou-a, enfim, para si. Se amaram, entregues, lambuzados de saliva, suor, gozo e esperma.  


Maria Lemke

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Versículos X - A-mar

  Mar é um pedaço de amor que Deus pintou de azul.

Maria Lemke
                                                                                                                                                                                                                                      Foto: Maria Lemke


sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Amor guardado

Bolo congelado é um pedaço de carinho que alguém guardou. Tem um sabor especial, pqe num momento especial, alguém lembrou de vc.
Se vc pensa "será que fica bom congelado?". Não tenha dúvidas, o amor guardado naquele pacotinho faz tudo ser delícia. Faz marejar os olhos de alegria. Adoça a alma, o coração. Não importa se de chocolate, abacaxi, nozes ou limão.

Maria Lemke

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Leve

Se mundo brotou do som de um beijo, como escreveu o poeta, então o amor deve ter nascido de traços e rabiscos, da poesia, de uma prosa suave que virou poema. O amor deve ter nascido do afago em meio a palavras doces, suaves, serenas. O amor nasceu  pra tornar a vida mais leve, doce, plena.

Maria Lemke

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Encantaria


Atravessou sua carne macia, rompeu suas fronteiras. Penetrou fundo em seus pensamentos, revirou seu mundo. No apre(s)samento da vontade, naquele instante fecundo, tornaram-se fluxo. Num vai e vem cadenciado, desejo, alma, sex(t)o sentido. Fundidos, entrelaçados, eram mais que pernas, braços, ventre, vazante de rio, delicado, escorregadio. Misto de desejo profano e fé. Eram mais que um só. Eram poesia. Juntos, suados, eram gozo divino. Encantaria. Desaguados, eram amantes, cheia de (a)mar-é.


Maria Lemke